Imagine uma situação brasileira comum: uma mulher que trabalhou muitos anos como empregada doméstica, mas não tinha tudo certinho na papelada. Agora, pense que a Justiça reconheceu isso, não por um formulário perfeito, mas por uma leitura mais humana. É exatamente isso que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) fez ao reverter uma decisão anterior: ele reconheceu o vínculo trabalhista mesmo com rasura na carteira, aplicando o Protocolo de Perspectiva de Gênero. Vamos a esse caso que representa um avanço, aliando justiça e empatia.
Quem foi a trabalhadora e qual a reivindicação?
A beneficiária era empregada doméstica entre 08/04/1973 e 12/04/1979, conforme registrado em sua Carteira de Trabalho (CTPS), mas essa anotação tinha rasura, o que confundiu o INSS. Por isso, o órgão apenas reconheceu o vínculo até dezembro de 1974, deixando de contabilizar a totalidade do período.
Essa mulher buscava seu benefício de aposentadoria por idade — mas, sem comprovação de que prestou serviço por tempo suficiente, havia ficado com apenas parte dos registros reconhecidos.
A força da prova testemunhal
Na audiência, testemunhas confirmaram com certeza que ela trabalhou por todo o período alegado, e isso se tornou decisivo. O tribunal considerou esse depoimento oral junto à carteira, mesmo com rasura, mostrando que a prova testemunhal pode compensar falhas documentais.
Ou seja: apesar da informalidade e da falta de rigor documental, ficou claro que ela exerceu a atividade doméstica durante quase seis anos.
Perspectiva de gênero: um olhar transformador
O ponto-chave foi a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero — parte da Resolução CNJ nº 492/2023. Esse protocolo orienta que as decisões judiciais devem levar em conta desigualdades estruturais, principalmente envolvendo mulheres e profissões historicamente invisibilizadas.
A desembargadora relatora, Inês Virgínia, reforçou que o paradigma formalista — como a rasura — não pode impedir a comprovação, quando há combinação de provas e cenário de discriminação histórica e informal. Ou seja: a falta de perfeição na documentação não negou o direito, pois havia percepção da realidade do trabalho doméstico, especialmente feminino.
O que o precedente mudou?
O TRF3 firmou fundamentos importantes:
- Rasura na CTPS não inviabiliza automaticamente o vínculo, desde que haja prova testemunhal consistente e coerente com outros registros.
- Ao aplicar o Protocolo de Gênero, o tribunal reconheceu que mulheres enfrentam barreiras específicas — por serem domesticamente invisibilizadas — e que isso deve ser considerado na interpretação das provas.
- Reconheceu também que, mesmo informal, o trabalho doméstico pode ser contado para a aposentadoria por idade urbana, desde que cumpridos os requisitos legais.
Fundamentação jurídica
A decisão do TRF3 seguiu exemplos de tribunais superiores, como o STJ, que já apontaram que prova testemunhal + início de prova documental (como carteira rasurada) pode bastar, especialmente para períodos anteriores à regulamentação trabalhista.
Mas a grande novidade é a adoção do protocolo de gênero, que exige que juízas e juízes considerem:
- as dificuldades enfrentadas por mulheres no mercado formal;
- a informalidade gritante do serviço doméstico no Brasil;
- o tratamento da rasura como mero indício formal, jamais como motivo de negação automática.
Além disso, há entendimento de que a inversão de provas deve favorecer quem vive uma realidade de desigualdade estrutural — reforçando a ideia de que a Justiça precisa ser sensível ao papel das mulheres.
Por que isso é importante para o futuro?
Esse entendimento abre horizonte para casos semelhantes. Muitas mulheres dependeram da informalidade e passaram anos sem anotação formal, mas com total dedicação ao trabalho doméstico. Reconhecer esses vínculos mesmo sem papéis perfeitos pode garantir:
- mais segurança jurídica;
- aposentadorias com dignidade;
- fim de barreiras documentais habituais ao público feminino.
É mais que uma vitória individual: é um avanço estrutural no reconhecimento do trabalho feminino.
Impactos práticos e próximos passos
- Vítimas semelhantes podem buscar seus direitos com base neste precedente;
- Advogados podem fortalecer argumentos combinando prova testemunhal + documento imperfeito;
- O tribunal realça que as decisões devem ser revistas com o retoque humano do protocolo de gênero.
Espera-se, ainda, que outros tribunais federais adotem esse paradigma, estendendo a visão mais inclusiva e justa a mulheres de todo o país — especialmente nas regiões Sul e Sudeste.
Considerações finais
O reconhecimento do vínculo trabalhista pela TRF3 mostra como a justiça sensível às desigualdades pode corrigir erros históricos, garantindo direitos a quem trabalhou duro, mas sem acesso formal. A adoção da perspectiva de gênero pela Justiça Federal é mais uma confirmação: o sistema judicial pode e deve ser instrumento de reparação social.
Quer entender melhor seus direitos como trabalhador(a) doméstico(a) ou conhecer seus prazos para requerer aposentadoria com base neste precedente? Continue no nosso blog, compartilhe com quem precisa e fique por dentro de mais decisões impactantes!
Perguntas Frequentes (FAQ)
O que é o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero?
É uma diretriz do CNJ (Resolução 492/2023) que orienta juízes a considerar desigualdades estruturais de gênero ao analisar provas, melhorando o acesso e a igualdade.
Rasuras na CTPS impedem pleitear aposentadoria?
Não. Se o documento tiver rasura, mas há prova testemunhal sólida, a Justiça pode reconhecer o vínculo trabalhista .
Há precedente nacional para esse tipo de decisão?
Sim. O STJ aceita testemunhos + início de prova documental para trabalho doméstico antigo, mesmo sem contribuição, bem como decisões dos TRFs que seguem esse entendimento.
A decisão do TRF3 tem efeito apenas regional?
Ela vale para a 3ª Região (SP e MS), mas serve de referência para todo o país, inspirando outros tribunais a adotarem critérios de justiça com perspectiva de gênero.
Qual período foi reconhecido?
O tribunal reconheceu vínculo de 08/04/1973 a 12/04/1979, não apenas até 1974 — o que permitiu a concessão da aposentadoria por idade com base em mais tempo trabalhado.
Quem pode se beneficiar agora?
Mulheres que trabalharam como domésticas, especialmente antes da formalização trabalhista, e que enfrentam dificuldades para provar o tempo de serviço — com testemunhos e documentos parciais, podem buscar seus direitos com este precedente.